"Entre a casa e o trabalho, faço o meu melhor. Vejam só! – a melhor pista para entender Gilber T está aí mesmo, na letra de uma das 12 músicas que compõem o CD Eu Não Vou Morrer Hoje. Alguns o conhecem como guitarrista do Laura Palmer, coletivo do Rio que resgata hoje o que de mais interessante havia no rock brasileiro dos anos 80: uma mistura de curiosidade, falta de cerimônia para quebrar barreiras e amor pela erudição pop. Outros ainda hão de lembrar de Gilber T como o guitarrista do Tornado, uma das várias bandas que botavam fogo no underground carioca dos anos 90 (de Garage Art Cult e demais buracos) friccionando black music e rock pesado.
Mas é de um outro Gilber, de que fala esse disco: o cara que concilia as dores e delícias do cotidiano – emprego formal, contas a pagar, mulher, engarrafamento, cachorro – com as viagens transcendentais que faz em sua própria cabeça, ao som da guitarra de Jimi Hendrix. Em seu momento de escape, a fuga é a música. E a música é sua melhor tradução, sua melhor crônica. De tudo que é e o que ainda pode ser. De um mundo complicado, veloz e perfeitinho, onde Bob Marley toca com acompanhamento dos Pixies num bar de São Gonçalo, com muita cerveja barata.
Todas as loas à tecnologia dos anos 00, que possibilitou ao cara sentar na frente de um computador e, no tempo livre, montar seu primeiro disco solo. Ele plugou suas guitarras SG e Telecaster na placa de som, escolheu os samples, programou as batidas, tocou baixos e sintetizadores e deixou o resto nas mãos dos amigos Bruno Marcus (que tocou mais alguns instrumentos, soltou beats e ainda cuidou da produção e mixagem), Gil Mendes (da bateria tribal e animal) e Ronaldo Campos (do baixo). Assim, com toda calma, foi feito o disco desse guitarrista e compositor influenciado por vários estilos, que, em suas próprias palavras, “junta, copia, sampleia, recicla e envolve com canções de três minutos em média, refrões repetitivos, alternando estrofe/refrão, eventuais solos de guitarra ou não, tudo conforme a cartilha pop.”
E vamos pela ordem. Eu Não Vou Morrer Hoje começa com “Se Você For...”, um ska contagiante, com beat de “Bone Machine”, o uiê! de Bob Marley, órgão e guitarra trêmolo – é aquela tal viagem, tentando unir Pixies e Marley, nas curvas da estrada de Tribobó (“Podia acelerar quando a polícia chegar. Podia correr quando a gasolina acabar”). Segue a vinheta “Epifania”, que tem tanto de Oriente Médio quanto do clima faroeste de “Unforgiven”, do Metallica – ela é, na verdade, a reciclagem de “Pirâmides”, tema que Gilber T compôs na adolescência e que ressurge como flashback de uma história muito pessoal. “Tenho uma Bomba”, por sua vez, é o cara brincando de Beck, ao juntar guitarra slide e beatbox de dancehall. E o que você ouve ali no meio não são scratches – são efeitos de chave de guitarra, ferozes, bem Rage Against The Machine. Na letra da canção, Gilber investe em metáforas para falar de um amor explosivo, imaginando um jardim de rosas da Faixa de Gaza (“Escolha o fio certo e desarme minha tristeza”).
Na seqüência, “Hey Menina” surge pop, folk e ensolarada como as boas músicas do Sublime. É violão e beats, com toques de guitarra Hendrix de Axis Bold as Love – ouça lá e depois venha dizer se Gilber T não sabe o que faz com as seis cordas! A eletrônica junta bateria acústica e eletrônica, costurando também samples de Prince e Nina Simone em mais uma canção de amor do disco. Já o samba-rock “Bel 2604” é a música que o guitarrista fez para a mulher – se Jorge Ben cantou em verso e suingue as suas Teresas e Domingas, porque Gilber T não pode fazer o mesmo com a sua Isabel? A festa de percussão, dos amigos Fábio Lessa e Paulo Márcio e o piano elétrico à la Beck de “Where It’s At?” embalam versos tipicamente benjorianos como “esculpi o seu rosto numa ametista / minha obra de mestre, minha peça mais rara.” Uma outra musa dá as caras na latina (com direito até a bongozinho sampleado) “Silêncio Hola”: é Luciana Lazulli, vocalista do Laura Palmer, emprestando sensualidade a esse pop hipnótico, meio Happy Mondays e cheio de poesia (“Enquanto o sono não me entorpece / mergulho na paz que não me adormece”).
E chegamos enfim a “Eu Não Vou Morrer Hoje”, música que dá título ao disco e que nasceu numa viagem de van, em tempos de baixo astral, com muito Fevers na cabeça. Depois, com um pouco dos sintetizadores de The Cars para colorir e uma citação a Joy Division (“eu não vou morrer hoje / eu soube quando ouvi ‘Love Will Tear Us Apart’”), ficou pronta essa música que oscila entre extremos de sentimento. “Nas estrofes, a letra é alegre e a melodia é triste. No refrão, a letra é densa, mas a melodia é alegre”, explica o autor. Daí viramos a esquina e lá estamos nós na “Alameda São Boaventura” (via que liga a Ponte e o Centro de Niterói e Alcântara e Marica) – a “Crosstown Traffic” de Gilber T, composta (como é de praxe) no trajeto para chegar ao trabalho. A bateria tribal de Gil Mendes e o rap inspirado de Speed Freaks (um dos melhores amigos de Gilber, morto recentemente) acompanham a epopéia urbana e um tanto lisérgica do guitarrista. O sinal verde, o verdinho queimando no cigarrinho maluco, a buzina da gata... As imagens abundam. “Gasolina carbura, esquentando a cidade / o chão arde / Speed e Gilber, catástrofe urbana em alta velocidade”. E o trânsito parado na Alameda.
Tem horas em que dá vontade de pegar uma estrada vazia e fugir. E aí vem, em seguida, a bela faixa “Eu, Você e Suzie”, um emotivo country & western que é puro Johnny Cash. “Eu estava muito a fim de fazer uma canção em que citasse minha cadela Suzie, como se fosse uma descrição de uma fuga minha, de minha mulher e de Suzie por uma estrada sem fim que sempre sonhei em percorrer, mas que até então não tive a oportunidade”, conta Gilber. Suzie morreu dois meses depois de a música ter sido gravada. “Mas ainda consegui registrar seus latidos.” Logo depois, é a vez de “Seu Amor é Suicídio”, canção que tem Portishead, folk, Bob Marley, ragga e mais imagens on the road (“Guiando meu carro em baixa velocidade / rodando a cidade / buscando as cores de um fim de tarde”).
E assim chegamos ao fim da viagem de Eu Não Vou Morrer Hoje com “Numsobranada”, faixa na qual Gilber solta um rap em parceria com o niteroiense De Leve sobre uma gorda base eletrônica, entre o Miami bass de um 2 Live Crew e um future funk de Missy Elliot. “Nem imaginava em fazer letra”, conta ele. “Mas um dia indo para casa, parei com meu carro em cima de uma pedra que duas semanas antes tinha arrebentado meu cano de descarga. Daquele dia em diante, toda vez que não batia o fundo do carro na pedra eu cantava: Desviei da pedra! Aí, me deu um estalo e pensei em desenvolver uma letra de conotação espiritual. Juntei trecho da Bíblia, citei a caminhada de Cristo e falei das coisas de moleque, tipo ser benzido contra mau olhado.” Clóvis, um colega de trabalho de Gilber fez a introdução Tim Maia Racional da canção e Pedro Selector, dos Seletores de Freqüência de BNegão, mandou ver no trompete. É pra cantar junto: “Desviei da pedrada, ouça o som da estilhaçada. Desviei da pedrada, se bater numsobranada.” E aí fica a lição de Gilber T, o homem que, apesar de tudo, fez o seu disco. E agora espera que você o ouça – até o ponto final."
Silvio Essinger, Janeiro de 2010.
“UTI” é a faixa bônus, feita com os amigos De Leve, Rabu Gonzáles e Speed Freaks. Infelizmente, após essa gravação, o rapper Speed Freaks, um dos precursores do hip hop no Brasil e amigo de infância de Gilber, morreu assassinado em circunstâncias ainda não esclarecidas. Presume-se que este seja o último registro da voz de Speed Freaks.
Este disco é dedicado à sua memória.
Paz.
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