Imigrantes jamaicanos, fugidos de
uma grande crise, habitaram os guetos de Nova York nos anos 70. Escaparam da
miséria em seu país para serem pobres em um país alien, e levaram consigo uma
nova forma de entretenimento que rapidamente ganhou o gosto de outros jovens
negros e pobres como eles: o rap, a
interferência do mestre de cerimônias durante a música tocada nas festas. Como
não tinham dinheiro para comprarem instrumentos musicais, os jovens começam a
fazer de suas próprias vitrolas os seus instrumentos, arranhando os discos para
produzir ruídos e sampleando trechos da americaníssima disco music. Assim surge o hip-hop, hoje uma expressão cultural
riquíssima (em todos os sentidos) e de grande representatividade e identidade
para milhares de pessoas.
A poesia, como a conhecemos,
nasce com a música. A necessidade de levar as histórias para cidades mais
distantes gera a rima que, acompanhada de instrumentos rudimentares, facilita sua
lembrança por parte dos aedos. Com o passar do tempo, ela ganha a palavra
escrita (privilégio de muitos poucos) e toma um caminho separado da música para
ser domada pela nobreza e se hermetizar através de signos referenciais
distantes do vulgo. No séc. XV, em Portugal, essa poesia palaciana é
apresentada em saraus aristocráticos, contida em sua riqueza de redondilhas e
temas fúteis da nobreza. Ao mesmo tempo, lá fora, os trovadores – que não
sabiam escrever palavras difíceis – continuavam produzindo suas cantigas e
divertindo os menos favorecidos, em feiras livres e tavernas, cantando versos
de escárnio contra seus senhores e maldizendo mulheres dadivosas em gosto
popular. Inferiores tecnicamente em comparação aos vilancetes e esparsas, eram
muito mais férteis em sua expressão de mundo.
A Arte é uma das formas mais
nobres (em essência, não em sociotipia) de expressão humana. Através de
técnicas e estilos, o homem (e a mulher) comunica sua percepção de mundo,
buscando se aproximar do outro por instâncias mais profundas que a aparência. A
Arte é um produto humano que não enche barriga, não paga as contas nem cura
doenças do corpo, porém indispensável à manutenção da sanidade mental e
sentimental, religando mais que o mito (outra forma de representação
artística).
A apropriação da Arte pela
aristocracia é histórica, é a manutenção dos meios de controle exercido por uma
minoria que estabelece para si um patamar mais alto – cultural ou econômico – e
se arroga do direito de domínio sobre os demais. Esse processo faz com que a
Arte seja revestida de complexidades estéticas e atrelada a ferramentas
produtivas (principalmente intelectuais) próprias da elite, a fim de que se
mantenha o monopólio da produção e do chamado “bom gosto”. O grande paradigma
desse artifício é que essa maioria, sem acesso à esta artificial Arcádia,
também necessita se expressar e apresentar sua visão de mundo – muitas vezes
mais complexa em experiências e imagens.
Os desfavorecidos sempre deram um
jeito de produzir Arte, à margem e ao largo do “bom gosto” palaciano. Dos
trovadores da Idade Média aos MCs do Brooklyn, do artesanato de povos
autóctones ao grafitti, a periferia
tem a sua estética e sua expressão, independente do alheamento voluntário
(quase sempre covarde, algumas vezes inocente) dos donos do mundo. Os artistas
populares (periféricos, marginais, alternativos) alquimizam as migalhas a eles
concedidas em ouro bruto, apropriam-se dos instrumentos da Arte Erudita a que
têm acesso e criam, arranhando os discos do saldão, pintando com latas de
tintas automotivas ou usando as palavras aprendidas na escola (como meio de
instrumentalização de mão de obra). Criam, expressam, emocionam seus pares –
também barrados na festa totêmica – falando de realidades paralelas à rua
principal e ao sistema de benefícios autoconcedidos da aristocracia.
É nesse cenário que eclode hoje a
resistência cultural, materializada em diversos saraus urbanos. Multiplexados,
heterogêneos e esteticamente independentes, representam a emergência da
necessidade ancestral de expressão dos povos de periferia - uma periferia
social, não geográfica. Em São Gonçalo, em Manguinhos, na Cidade de Deus, na
Rocinha, no Vidigal, artistas vêm realizando um trabalho de formiguinha para
popularizar a Arte e dar acesso, representar e se ver representado através de
meios que lhes foram historicamente negados, como a poesia e a fotografia. “Os
saraus que agitam as regiões consideradas periféricas em cidades como Rio, São
Paulo, Recife e Salvador questionam a distância que muitas vezes é estabelecida
entre uma pouco provável 'Arte' com 'A' maiúsculo fruto de um processo criativo
teoricamente mais sofisticado em relação ao que é produzido nessas áreas
socioeconomicamente mais pobres. Não acredito em "Arte" com letra
maiúscula como se fosse uma entidade metafísica e a inspiração literária fosse
um dom. Literatura é suor. Exige leitura, diálogo com o mundo, disciplina e o
exercício do hábito de escrever e reescrever”, diz Viviane de Sales, escritora e produtora
cultural da Cidade de Deus, RJ, produtora do Poesia de Esquina, evento que congrega
poetas de todas as idades, e populariza a poesia e traz à tona as produções
artísticas da comunidade, de crianças a idosos. “Há um resgate da poesia
falada, o que se refere aos primórdios do gênero, do hábito de ouvir o outro,
de recitar poemas autorais e de outros poetas, da troca de afetividade que
muitas vezes inspira a produção artística”, diz Viviane, que também escreve e
esteve entre os vencedores do concurso literário FLUPP Pensa, realizado entre
100 escritores de comunidades pacificadas do Rio de Janeiro.
Mesmo o conceito de sarau,
herdado de eventos culturais típicos da burguesia, destinados geralmente ao
arrogante desfile de capacidades entre os pares, é apropriado pela periferia
social e ressignificado. O encontro de diversas manifestações readaptadas e
produzidas nos guetos com novas expressões se dá nos mais variados espaços, e
em diferentes organizações. Alguns ainda se pautam pelo modelo clássico e,
mesmo dando voz a pluralidades artísticas, acabam se limitando no conceito.
Outros inovam no tempo e no espaço, e, não imbuídos de pretensão alguma que não
a necessidade de expressão, representam igualmente a emergência da legitimação
artística periférica ao status quo.
“Quando a pessoa fala sarau, remete a um elefante branco, sem organização, com
microfone livre pra qualquer bêbado e tia de karaokê”, comenta Romário Régis,
um dos agitadores culturais de São Gonçalo. Com a experiência adquirida principalmente
na observação e vivência do papel do jovem no novo espaço urbano e a
instrumentalização adquirida na participação do programa “Parceiros do RJ-TV”,
realizado pela maior emissora de TV do país (em alcance popular), Romário hoje
coordena a Agência Papagoiaba, destinada a dar suporte e visibilidade para as
potências sociais e culturais através da comunicação. “Quando eu conheci o
conceito de Sarau, achei incrível pois me colocava num lugar novo, onde ninguém
havia me levado. Depois de meses, percebi que o sarau era uma narrativa
política de resistência, que deveria se manter, mas que deveria mudar o método
de existir. (...)a Roda Cultural de SG,
no fino, é um Sarau, porém o conceito está tão atravessados na garganta de todo
mundo, que nego muda o nome”, completa. A Roda Cultural de São Gonçalo é um
movimento de resistência pautado na expressão hip-hop, e acontece sem apoio
comercial ou público nenhum a cada quarta-feira, em uma praça da cidade,
reunindo mais de 200 pessoas.
Como se não bastasse, a mesma
elite que tem se arroga detentora do “bom gosto” domina os meios de comunicação,
e a Mídia ainda não sabe lidar com a inconveniência dos morlocks estarem
produzindo Arte (Os Eloi pira), e não consegue (nem quer) enquadrar essas
manifestações. Quando voltam seu olhar para a cultura de periferia, jornais e
TVs insistem em utilizar a mesma fórmula puída de usar a situação social como
refém, o olhar alencarino de achar o Brasil “exótico”. É a velha tática do
desmerecer a Arte produzida fora do eixo Zona Sul, mostrando como “bonitinho” o
“coitadinho” que tenta se enquadrar nas fórmulas por eles ditadas, tratando
como singularidade o que é complexo, como mimetismo o que é original. Esse
grupo, inclusive, quando se propõe a “ajudar” segue sempre os mesmo caminhos
absurdos da subestimação: “apresenta” seus parâmetros de forma diluída - para
tentar domesticar o gosto da plebe ou incentiva apenas as manifestações típicas
já consideradas “menores”. Um bom exemplo disso é a fomentação das oficinas de
“batuque” variadas oferecidas nas escolas públicas, direcionando o
posicionamento desejado aos pobres.
“A mídia nem é tão representante
assim de uma erudição, não há tantos eruditos assim. Mas a imprensa tem sim
dificuldades de cobrir tudo o que foge de sua pauta tradicional, isso tem a ver
com a própria original social do jornalista e com a lógica de cada publicação,
diz Fernando Molica, escritor e jornalista de um dos jornais de maior
circulação do Rio de Janeiro. “Numa sociedade tão excludente como a nossa, o
trabalho nas periferias se torna ainda mais relevante. Afinal, livros acabaram
sendo entronizados como representantes de uma cultura de elite, consumida e
reproduzida entre poucos”, completa.
Viviane de Sales vai um pouco
mais além em sua análise: “As narrativas sobre a produção de arte nas
periferias estão cada vez mais em disputa e precisam ser cada vez objetos de
interesse por parte dos atores locais dessas cenas literárias. Cobrir
jornalisticamente o outro como 'pleno' e não como 'carente em ascensão' tem
sido um exercício difícil por boa parte da mídia. Há sempre um tapinha nas costas
'isso aí, meu filho' por trás de uma matéria num jornal. A periferia sempre
produziu poesia. É preciso disputar os discursos que constroem o imaginário das
pessoas em relação à dita periferia”.
Fora da mídia, a periferia
continua produzindo Arte, como sempre o fez, à margem de validações e
desprezando valorações hipócritas, baseadas em cifras e marcas, como bem
exemplifica o poeta Romulo Narducci: “A ARTE(...) verdadeira já é por si mesma,
pelo seu élan contestador e importunador do meio social, uma excluída. Os
excluídos são apenas vozes dessa arte, que incomoda, que contesta, que se faz
descontente com o meio social que vivemos. A exclusão hoje se faz de maneira
clara e bairrista, principalmente a vista de Rio de Janeiro, Niterói, São
Gonçalo... há um muro mesmo dentro da própria cidade do Rio, pois temos os
eventos da zona Sul (muito bacaninhas, mamãozinho com açúcar, todo mundo é
artista de facebook, Rio-Rio-Rio-nós-te-amamos-Rio-temos-nossa-farinha-láctea-no-final-do-dia-e-bananinha-com-geleia-preparada-pela-dona-clotilde-diarista-sem-carteira-assinada)
e por outro lado os eventos da periferia (PERIFERIA SIM, sem preconceito mas
dado o conceito formado e hipócrita dos demais que não vivem aquela realidade).
O filho da Dona Clotilde, que não tem a farinha láctea e a bananinha com
geleia, etá lá, recitando a verdade no Poesia da Esquina, na Cidade de Deus,
atravessando a ponte sem medo de índio para a Taverna, em São Gonçalo, e para a
Roda Cultural do Engenho do Mato, em Niterói. A arte, excluída hoje dos meios
de massificação é o corpo. A voz dos excluídos são a sua voz”.
Juntamente com Rodrigo Santos, Romulo
Narducci cerra ombros há dez anos na vanguarda da batalha com o evento “Uma Noite
na Taverna”, destinado a popularizar a poesia em uma cidade tão improvável
quanto São Gonçalo, RJ. “O Uma Noite na
Taverna é um evento que vem sendo realizado a muito custo, numa cidade
considerada dormitório, em muitos aspectos culturais, apesar da sua riqueza em
diversos ramos da arte. (...) creio que a sua longevidade, mesmo sem o apoio de
empresários locais e do governo, faz com que o evento ganhe mais respeito por
isso, pois este só acontece e vem persistindo pela resposta do público que
comparece em peso em cada edição. Esse vem sendo o aspecto primordial de sua
existência e sua fortaleza. A importância do evento se faz na necessidade de
mostrar a arte, pura e simplesmente. E como disse, o público carente de
contemplar algo que não tem acesso, ou quando tem, esbarra na impossibilidade
financeira de peças e espetáculos caríssimos (e o interessante é que muitas
vezes esses espetáculos são apoiados pelo governo). A Taverna é diversão
gratuita ao público, divulgação da arte da poesia a fim de popularizá-la e um
espaço aberto para artistas mostrarem seus trabalhos sem qualquer tipo de
pré-analise de seus trabalhos ou censura."
A hora é agora, e os eventos
artísticos que pululam na cidade revalidam a função primordial da Arte, que é
mitigar o sofrimento da alma humana perante os desmandos da vida. Quem mais
senão os excluídos da imposta ordem precisa mais dela? E o melhor: a Arte não
enche barriga, não veste, não completa o tanque do carro, mas não há ninguém –
independente de seu papel social – que não viva sem ela. Portanto...
EVOÉ, periferia!
Rodrigo Santos é poeta, pai do Miguel, marido
de Maria Isabel, Flamenguista, Professor e Corredor de Rua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário