sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A Emergência Cultural dos Saraus de Periferia


Imigrantes jamaicanos, fugidos de uma grande crise, habitaram os guetos de Nova York nos anos 70. Escaparam da miséria em seu país para serem pobres em um país alien, e levaram consigo uma nova forma de entretenimento que rapidamente ganhou o gosto de outros jovens negros e pobres como eles: o rap, a interferência do mestre de cerimônias durante a música tocada nas festas. Como não tinham dinheiro para comprarem instrumentos musicais, os jovens começam a fazer de suas próprias vitrolas os seus instrumentos, arranhando os discos para produzir ruídos e sampleando trechos da americaníssima disco music. Assim surge o hip-hop, hoje uma expressão cultural riquíssima (em todos os sentidos) e de grande representatividade e identidade para milhares de pessoas.
A poesia, como a conhecemos, nasce com a música. A necessidade de levar as histórias para cidades mais distantes gera a rima que, acompanhada de instrumentos rudimentares, facilita sua lembrança por parte dos aedos. Com o passar do tempo, ela ganha a palavra escrita (privilégio de muitos poucos) e toma um caminho separado da música para ser domada pela nobreza e se hermetizar através de signos referenciais distantes do vulgo. No séc. XV, em Portugal, essa poesia palaciana é apresentada em saraus aristocráticos, contida em sua riqueza de redondilhas e temas fúteis da nobreza. Ao mesmo tempo, lá fora, os trovadores – que não sabiam escrever palavras difíceis – continuavam produzindo suas cantigas e divertindo os menos favorecidos, em feiras livres e tavernas, cantando versos de escárnio contra seus senhores e maldizendo mulheres dadivosas em gosto popular. Inferiores tecnicamente em comparação aos vilancetes e esparsas, eram muito mais férteis em sua expressão de mundo.
A Arte é uma das formas mais nobres (em essência, não em sociotipia) de expressão humana. Através de técnicas e estilos, o homem (e a mulher) comunica sua percepção de mundo, buscando se aproximar do outro por instâncias mais profundas que a aparência. A Arte é um produto humano que não enche barriga, não paga as contas nem cura doenças do corpo, porém indispensável à manutenção da sanidade mental e sentimental, religando mais que o mito (outra forma de representação artística).
A apropriação da Arte pela aristocracia é histórica, é a manutenção dos meios de controle exercido por uma minoria que estabelece para si um patamar mais alto – cultural ou econômico – e se arroga do direito de domínio sobre os demais. Esse processo faz com que a Arte seja revestida de complexidades estéticas e atrelada a ferramentas produtivas (principalmente intelectuais) próprias da elite, a fim de que se mantenha o monopólio da produção e do chamado “bom gosto”. O grande paradigma desse artifício é que essa maioria, sem acesso à esta artificial Arcádia, também necessita se expressar e apresentar sua visão de mundo – muitas vezes mais complexa em experiências e imagens.
Os desfavorecidos sempre deram um jeito de produzir Arte, à margem e ao largo do “bom gosto” palaciano. Dos trovadores da Idade Média aos MCs do Brooklyn, do artesanato de povos autóctones ao grafitti, a periferia tem a sua estética e sua expressão, independente do alheamento voluntário (quase sempre covarde, algumas vezes inocente) dos donos do mundo. Os artistas populares (periféricos, marginais, alternativos) alquimizam as migalhas a eles concedidas em ouro bruto, apropriam-se dos instrumentos da Arte Erudita a que têm acesso e criam, arranhando os discos do saldão, pintando com latas de tintas automotivas ou usando as palavras aprendidas na escola (como meio de instrumentalização de mão de obra). Criam, expressam, emocionam seus pares – também barrados na festa totêmica – falando de realidades paralelas à rua principal e ao sistema de benefícios autoconcedidos da aristocracia.
É nesse cenário que eclode hoje a resistência cultural, materializada em diversos saraus urbanos. Multiplexados, heterogêneos e esteticamente independentes, representam a emergência da necessidade ancestral de expressão dos povos de periferia - uma periferia social, não geográfica. Em São Gonçalo, em Manguinhos, na Cidade de Deus, na Rocinha, no Vidigal, artistas vêm realizando um trabalho de formiguinha para popularizar a Arte e dar acesso, representar e se ver representado através de meios que lhes foram historicamente negados, como a poesia e a fotografia. “Os saraus que agitam as regiões consideradas periféricas em cidades como Rio, São Paulo, Recife e Salvador questionam a distância que muitas vezes é estabelecida entre uma pouco provável 'Arte' com 'A' maiúsculo fruto de um processo criativo teoricamente mais sofisticado em relação ao que é produzido nessas áreas socioeconomicamente mais pobres. Não acredito em "Arte" com letra maiúscula como se fosse uma entidade metafísica e a inspiração literária fosse um dom. Literatura é suor. Exige leitura, diálogo com o mundo, disciplina e o exercício do hábito de escrever e reescrever”, diz Viviane de Sales, escritora e produtora cultural da Cidade de Deus, RJ, produtora do Poesia de Esquina, evento que congrega poetas de todas as idades, e populariza a poesia e traz à tona as produções artísticas da comunidade, de crianças a idosos. “Há um resgate da poesia falada, o que se refere aos primórdios do gênero, do hábito de ouvir o outro, de recitar poemas autorais e de outros poetas, da troca de afetividade que muitas vezes inspira a produção artística”, diz Viviane, que também escreve e esteve entre os vencedores do concurso literário FLUPP Pensa, realizado entre 100 escritores de comunidades pacificadas do Rio de Janeiro.
Mesmo o conceito de sarau, herdado de eventos culturais típicos da burguesia, destinados geralmente ao arrogante desfile de capacidades entre os pares, é apropriado pela periferia social e ressignificado. O encontro de diversas manifestações readaptadas e produzidas nos guetos com novas expressões se dá nos mais variados espaços, e em diferentes organizações. Alguns ainda se pautam pelo modelo clássico e, mesmo dando voz a pluralidades artísticas, acabam se limitando no conceito. Outros inovam no tempo e no espaço, e, não imbuídos de pretensão alguma que não a necessidade de expressão, representam igualmente a emergência da legitimação artística periférica ao status quo. “Quando a pessoa fala sarau, remete a um elefante branco, sem organização, com microfone livre pra qualquer bêbado e tia de karaokê”, comenta Romário Régis, um dos agitadores culturais de São Gonçalo. Com a experiência adquirida principalmente na observação e vivência do papel do jovem no novo espaço urbano e a instrumentalização adquirida na participação do programa “Parceiros do RJ-TV”, realizado pela maior emissora de TV do país (em alcance popular), Romário hoje coordena a Agência Papagoiaba, destinada a dar suporte e visibilidade para as potências sociais e culturais através da comunicação. “Quando eu conheci o conceito de Sarau, achei incrível pois me colocava num lugar novo, onde ninguém havia me levado. Depois de meses, percebi que o sarau era uma narrativa política de resistência, que deveria se manter, mas que deveria mudar o método de existir.  (...)a Roda Cultural de SG, no fino, é um Sarau, porém o conceito está tão atravessados na garganta de todo mundo, que nego muda o nome”, completa. A Roda Cultural de São Gonçalo é um movimento de resistência pautado na expressão hip-hop, e acontece sem apoio comercial ou público nenhum a cada quarta-feira, em uma praça da cidade, reunindo mais de 200 pessoas.
Como se não bastasse, a mesma elite que tem se arroga detentora do “bom gosto” domina os meios de comunicação, e a Mídia ainda não sabe lidar com a inconveniência dos morlocks estarem produzindo Arte (Os Eloi pira), e não consegue (nem quer) enquadrar essas manifestações. Quando voltam seu olhar para a cultura de periferia, jornais e TVs insistem em utilizar a mesma fórmula puída de usar a situação social como refém, o olhar alencarino de achar o Brasil “exótico”. É a velha tática do desmerecer a Arte produzida fora do eixo Zona Sul, mostrando como “bonitinho” o “coitadinho” que tenta se enquadrar nas fórmulas por eles ditadas, tratando como singularidade o que é complexo, como mimetismo o que é original. Esse grupo, inclusive, quando se propõe a “ajudar” segue sempre os mesmo caminhos absurdos da subestimação: “apresenta” seus parâmetros de forma diluída - para tentar domesticar o gosto da plebe ou incentiva apenas as manifestações típicas já consideradas “menores”. Um bom exemplo disso é a fomentação das oficinas de “batuque” variadas oferecidas nas escolas públicas, direcionando o posicionamento desejado aos pobres.
“A mídia nem é tão representante assim de uma erudição, não há tantos eruditos assim. Mas a imprensa tem sim dificuldades de cobrir tudo o que foge de sua pauta tradicional, isso tem a ver com a própria original social do jornalista e com a lógica de cada publicação, diz Fernando Molica, escritor e jornalista de um dos jornais de maior circulação do Rio de Janeiro. “Numa sociedade tão excludente como a nossa, o trabalho nas periferias se torna ainda mais relevante. Afinal, livros acabaram sendo entronizados como representantes de uma cultura de elite, consumida e reproduzida entre poucos”, completa.
Viviane de Sales vai um pouco mais além em sua análise: “As narrativas sobre a produção de arte nas periferias estão cada vez mais em disputa e precisam ser cada vez objetos de interesse por parte dos atores locais dessas cenas literárias. Cobrir jornalisticamente o outro como 'pleno' e não como 'carente em ascensão' tem sido um exercício difícil por boa parte da mídia. Há sempre um tapinha nas costas 'isso aí, meu filho' por trás de uma matéria num jornal. A periferia sempre produziu poesia. É preciso disputar os discursos que constroem o imaginário das pessoas em relação à dita periferia”.
Fora da mídia, a periferia continua produzindo Arte, como sempre o fez, à margem de validações e desprezando valorações hipócritas, baseadas em cifras e marcas, como bem exemplifica o poeta Romulo Narducci: “A ARTE(...) verdadeira já é por si mesma, pelo seu élan contestador e importunador do meio social, uma excluída. Os excluídos são apenas vozes dessa arte, que incomoda, que contesta, que se faz descontente com o meio social que vivemos. A exclusão hoje se faz de maneira clara e bairrista, principalmente a vista de Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo... há um muro mesmo dentro da própria cidade do Rio, pois temos os eventos da zona Sul (muito bacaninhas, mamãozinho com açúcar, todo mundo é artista de facebook, Rio-Rio-Rio-nós-te-amamos-Rio-temos-nossa-farinha-láctea-no-final-do-dia-e-bananinha-com-geleia-preparada-pela-dona-clotilde-diarista-sem-carteira-assinada) e por outro lado os eventos da periferia (PERIFERIA SIM, sem preconceito mas dado o conceito formado e hipócrita dos demais que não vivem aquela realidade). O filho da Dona Clotilde, que não tem a farinha láctea e a bananinha com geleia, etá lá, recitando a verdade no Poesia da Esquina, na Cidade de Deus, atravessando a ponte sem medo de índio para a Taverna, em São Gonçalo, e para a Roda Cultural do Engenho do Mato, em Niterói. A arte, excluída hoje dos meios de massificação é o corpo. A voz dos excluídos são a sua voz”.
Juntamente com Rodrigo Santos, Romulo Narducci cerra ombros há dez anos na vanguarda da batalha com o evento “Uma Noite na Taverna”, destinado a popularizar a poesia em uma cidade tão improvável quanto São Gonçalo, RJ. “O Uma Noite na Taverna é um evento que vem sendo realizado a muito custo, numa cidade considerada dormitório, em muitos aspectos culturais, apesar da sua riqueza em diversos ramos da arte. (...) creio que a sua longevidade, mesmo sem o apoio de empresários locais e do governo, faz com que o evento ganhe mais respeito por isso, pois este só acontece e vem persistindo pela resposta do público que comparece em peso em cada edição. Esse vem sendo o aspecto primordial de sua existência e sua fortaleza. A importância do evento se faz na necessidade de mostrar a arte, pura e simplesmente. E como disse, o público carente de contemplar algo que não tem acesso, ou quando tem, esbarra na impossibilidade financeira de peças e espetáculos caríssimos (e o interessante é que muitas vezes esses espetáculos são apoiados pelo governo). A Taverna é diversão gratuita ao público, divulgação da arte da poesia a fim de popularizá-la e um espaço aberto para artistas mostrarem seus trabalhos sem qualquer tipo de pré-analise de seus trabalhos ou censura."
A hora é agora, e os eventos artísticos que pululam na cidade revalidam a função primordial da Arte, que é mitigar o sofrimento da alma humana perante os desmandos da vida. Quem mais senão os excluídos da imposta ordem precisa mais dela? E o melhor: a Arte não enche barriga, não veste, não completa o tanque do carro, mas não há ninguém – independente de seu papel social – que não viva sem ela. Portanto...

EVOÉ, periferia!

   Rodrigo Santos é poeta, pai do Miguel, marido de Maria Isabel, Flamenguista, Professor e Corredor de Rua.
Estamos de volta! Após 6 meses de silêncio no Manifesto Tavernista, voltamos com nossa programação normal. E a Taverna segue em frente, sedutora e determinada a cada edição, arrebatando cada vez mais público, amante das artes e principalmente da poesia. Evoé!
Arte: Eduardo H. Martins